sexta-feira, 23 de outubro de 2009

SABBATH e outros poemas (1998)

And the sabbath rang slowly
In the pebbles of the holy streams

Dylan Thomas


Puisque je cherche l’inconnu,
je suis plus près de la mort.
Elle raconte, toutefois,
la crainte que j'éspère
et que je désire.
La vie, donc,
c’est une autre façon de mourir.



SABBATH
Para Carolina Marques, i.m.

Mãos tangem alaúdes noite adentro

A manhã não tarda

Ervas maceradas na água
o líquido escuro e espesso
escorre das vasilhas
deixadas ao relento

Fogaréus ardendo no escuro
céu sem estrelas

Uivos dos lobos
entre chilreios de pássaros
anunciam o fim da noite
e todos os presságios se misturam

Não esperamos mais

Tudo passou sob a folhagem das árvores
as adagas cravadas nas raízes
testemunhando a chegada

Este é o limite
Homem algum trespassará este lugar

Com os ramos cortados, tecemos guirlandas
e coroamos os príncipes
A festa começa

A lua nova lança sua face vazia
sobre rostos brancos

Sabbath
Um longo dia avança sobre o abismo
Nossos olhos voltados para o infinito

Sabbath
Nossas orações não fazem mais sentido
O ouro líquido escorre sobre as máscaras
preenchendo o contorno das faces
que perseguem manhãs como estas

Sabbath
Amanhecemos órfãos de nossa própria identidade
Outros seres brotam de nossos corpos
outro hálito de nossas bocas profanas

A água escorre sobre as pedras
as mãos lambuzadas de óleo
a besuntar as faces

Transgressão e violência
Crianças abandonadas
filhos da escuridão

Em vão esperamos no escuro
A tocha acesa tremula sobre as cabeças
crepitando a lenta sonolência de farpas

Silêncio

Hóspedes do eterno
selamos nossa aliança
Morte e vida alimentadas pelas mesmas mãos

Ouvem-se os últimos cantos até o anoitecer
A noite retorna sobre a planície
e novamente os riachos correm sobre a terra arada

Afastamos fantasmas
almas que vagam ensimesmadas
entes que gravitam entre esferas circunscritas
nesse mapa aberto sobre o coração da floresta

Encerramos as arcas para as manhãs futuras
e recolhemos pedras sob o pano púrpura
para o novo sabbath


O LIVRO DAS HORAS


Giro à volta de Deus, a torre das idades,
E giro há milênios, tantos...
Não sei ainda o que sou: falcão, tempestade
Ou um grande, um grande canto.

Rainer Maria Rilke



O Livro das Horas
Não há imperfeição possível

I

Caminhas
sob águas e ramagens
– manto transparente
sobre paisagens noturnas –
frios olhos
de quem vê através a alma


II

Teus movimentos
repetem-se
únicos
sob finas camadas de espera
vozes
que murmuram segredos
pela primeira vez
Teus rastros
habitam o silêncio
e as auroras

III

Percorres os desertos
e despes teu rosto
dos véus escuros
retornando aos mesmos lugares
sem a solidão das máscaras

IV

Visitante
de esferas ambíguas
cálido sopro
entre dentes
Torres altíssimas e distantes
anunciam tua chegada
Corpos sob os lençóis
devolvem teus breves abraços

V

Nunca retornamos
Ao voltar
seremos outros
a redescobrir no olhar
o rosto da última despedida

VI

Tua ausência te faz mais belo
Posso aguardar
nos meandros de tempo
enquanto não te vejo
Refaço os contornos de teus olhos
tua boca, teu queixo
e espero tua imagem se dissolver
e se recompor novamente

VII

Jamais soube quem eras
Imagino-te sem que me digas
Descubro aos poucos o que já sabia
Amo-te sem conhecer-te
como dádiva silenciosa
daquilo que sei
sem que saibas de mim

VIII

À noite
observamos os nós das ilhargas
espaçarem-se amorosamente
A escuridão retém segredos e imagens
e nos faz imperfeitos
somente para nós mesmos

IX

As tardes são azuis
tão iguais e desiguais entre si
espelho em que miramos
e não reconhecemos a mesma face
Olhamos
sobre os desvãos
sem perceber
os espaços abertos pelo nosso hálito

X

A noite antecipa
trajetos sobre a areia
passos tecendo caminhos
na distância

XI

Segues
a mesma perambulação
pelos vazios da memória
cravada nesta árvore secular
de onde resgatas os dias

XII

A cidade dorme
e se move sob o vento
Os relógios se detêm
sobre as horas mortas
quando colhemos o sereno
e o bebemos em segredo

XIII

A cada manhã
teu ritual se repete
Teu oráculo
tuas mãos de alabastro
runas perfeitas lançadas na bruma
O tempo é memória
e onde estiveste
o precipício

XIV

Abraça-me
Recolhe-me em teus braços
como se eu ainda fosse pequena
para lembrar-me do que perdi
Abraça-me

XV

Teu largo poema muscular
estende-se em teu ritmo
Deixas de ser um
e és vário
Tua voz em meus gestos
agora faz parte de mim

XVI

Toda manhã devolve teus rumores
e cantos sobre meu corpo
Lânguidos
recostamo-nos sobre o leito
enquanto o tempo escoa entre nossas peles

XVII

A vegetação rasteira
cobre tua fronte
como um rio sem margens
Teu olhar mescla
dor e espanto
e teus gestos denunciam o Paraíso

XVIII

Adormeço antes do amanhecer
Nesta manhã irremediável
te envolvo com minha alma

XIX

Te procurei
e não encontrava
teu rosto perdido
em algum canto da sala
Ouço tua voz
como se falasses ainda

XX

De fato
o que sei
não importa
Importa
o que ainda não sei

XXI

Curva-te
sobre mim
e me escuta
Não mais avançarás
sobre areias
Não mais esperarás
na sombra
nem deixarás escoar o tempo
entre teus dedos
Guarda-o porque é tudo que tens
e não tens nada

© Copyright 1998 Thereza Christina Rocque da Motta